novembro 14, 2025
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A atriz mexicana Marina de Tavira conta que um dia o seu genro, o escritor Emiliano Monge, lhe deu um livro que se tornou uma revelação para ela. Era sobre trabalho Antígona González Sara Uribe, publicado em 2012, que conta a história da busca por Tadeo, um irmão desaparecido em Tamaulipas, um dos estados do México com maior número de desaparecidos. “Antígona, esta jovem, uma das poucas heroínas gregas que se impõe num sistema que grita “não” face ao que considera injustiça, fascinou-me e estudei-a muito”, afirma de Tavira. “Sempre foi uma questão persistente para mim fazer algo com Antígona no teatro”, diz ele. O livro de Uribe, como uma revelação, impulsionou-a a realizar esse sonho. “Esta é a Antígona que tenho de fazer”, disse consigo mesmo.

É uma tarde fria de outono no bairro de Juarez, no centro da Cidade do México, em meio a uma geada temporária. Marina de Tavira encontrou-se com a irmã Cecília no teatro El Milagro para um ensaio da peça. Antígona González. Elas trabalham juntas pela primeira vez, combinando o talento de uma atriz com a habilidade de uma bordadeira. Marina é responsável por desenvolver um monólogo poderoso no palco, enquanto atrás dela, em um telão, são reproduzidas imagens e textos bordados pela irmã, num trabalho delicado e esmerado que acrescenta ternura a uma história dolorosa.

A obra de Uribe é uma reescrita do mito clássico de Antígona, mas colocada no contexto da violência e dos desaparecimentos no México. Através de uma voz coral que combina poesia, testemunho e acusação, a escritora transforma Antígona numa figura colectiva: uma mulher em busca do corpo do irmão desaparecido, como tantas outras que percorrem o país clamando por justiça. A obra se estrutura como uma colagem de vozes de buscadores, desaparecidos e ociosos, que expõem a ferida social de um país marcado pela impunidade. É Marina de Tavira no chão quem reproduz todas estas vozes que são a banda sonora do insulto.

“Há noites em que sonho que você está mais magra do que nunca”, diz Antígona na voz de Tavira. “Você anda sozinho à noite pelas ruas de cidades desconhecidas. Você me procura no escuro porque sente que estou te seguindo”, diz a mulher em um dos fragmentos de seu desesperado monólogo. Antígona tem certeza de que seu irmão está morto e, além de justiça, exige apenas uma coisa: o mais próximo da paz para ela é que uma manhã receba um telefonema dizendo que o corpo de Tadeu apareceu. Porque a vida a consumiu. Ela deve seguir uma rotina, pagar impostos num Estado preguiçoso, ir às aulas, porque “o desaparecimento de um irmão não é motivo de incapacidade”, porque “a vida não para de fluir por causa de desastres pessoais”. Na sala de aula, o professor faz a chamada de seus alunos. “Real, real”, eles repetem. Mas tudo o que ela ouve é: “Tadeo Gonzalez desapareceu”.

Nos intervalos entre os ensaios, Tavira diz que o trabalho de Uribe a assombrava como uma obsessão. “Levei muitos anos para que este projeto ganhasse forma, para que eu me atrevesse a fazê-lo. Comecemos pelo facto de estar sozinha em palco, o que nunca fiz. Não é propriamente uma peça de teatro, chamo-lhe poema de palco”, explica.

Sara Uribe, disse ele, escreveu uma peça para a diretora e atriz de Tamaulipas, Sandra Muñoz, quando 72 migrantes, originários da América Central e do Sul, acabavam de ser mortos em uma fazenda no município de San Fernando, Tamaulipas, por membros do cartel Los Zetas. As vítimas foram sequestradas e executadas após se recusarem a trabalhar para o grupo criminoso ou a pagar extorsão. O crime foi descoberto quando um dos migrantes conseguiu fugir e alertou as autoridades. O massacre de San Fernando foi um dos piores episódios de violência no México.

“Com o tempo, este se tornou um texto paradigmático. Esta é uma reflexão muito relevante. Estamos falando de mais de 100 mil pessoas desaparecidas, cujos corpos sequer foram encontrados”, comenta a atriz. “Sarah Uribe diz que esta é uma obra que eu não gostaria de escrever e que não gostaria que continuássemos a fazê-la, que gostaria que a lessemos agora mesmo e disséssemos: “Não, acabou, já não é relevante”. o meu corpo dá nome às ausências”, explica de Tavira. “Sinto que isto precisa de ser falado, que precisamos de falar em voz alta sobre o que, na minha opinião, é a mais brutal, terrível, a maior tragédia nacional”, afirma.

De Tavira conta que enquanto trabalhava na peça com a encenadora Sandra Félix, contou-lhe que tinha visto uma exposição de bordados feitos por buscadores, prática comum entre estes grupos de mães, filhas, esposas e irmãs que percorrem o país em busca dos seus familiares. “Começamos a fazer toda uma investigação porque existe todo um movimento em torno de pessoas que estão procurando, que se reúnem para bordar, e que nessa ação encontram algum tipo de companhia, de solidariedade, de um lugar onde possam colocar essas palavras, esses rostos”, diz a atriz. “O bordado se tornou um desafio para quem procura”, acrescenta.

Foi então que ela decidiu que o bordado seria uma adição poderosa à produção. E Cecília de Tavira juntou-se. Ela foi responsável por pesquisar essa tarefa de bordar aos buscadores, os textos e imagens que eles refletem em suas criações. “O bordado faz parte do trabalho da memória, da tentativa de tornar visíveis os desaparecidos, é a linguagem mais utilizada para se referir a eles”, explica enquanto a irmã termina as redações. Cecília de Tavira faz trabalhos têxteis, borda e está neste momento a preparar um livro infantil para ensinar às crianças a importância desta técnica. “O bordado está muito próximo da mulher, é algo feminino porque está intimamente relacionado com todos os tipos de atividades de cuidado. Esse é um trabalho que se faz muito nas comunidades de mulheres porque elas podem falar, ouvir, ou seja, o bordado permite essa geração de comunidade”, explica.

Essas mulheres bordam os rostos e os nomes dos parentes para que não sejam esquecidos, para que sobrevivam à ociosidade. Cecília leu o texto de Uribe para analisar como ela criou as imagens que acompanharam o monólogo da irmã. Ele salvou frases do texto e também criou carinhas. Ele teve que acompanhar os tempos, trabalhou tudo em dois meses, porque os ensaios já estavam em andamento. Bordadas em papel estão 104 imagens que foram fotografadas e depois convertidas em vídeo. “Para este trabalho fiz uma pesquisa visual, de repente aparecem retratos de buscadores, sapatos ou mochilas, e são todas imagens reais, de arquivo. Não quero me apropriar da linguagem deles, estou apenas compartilhando seus bordados”, admite.

De Tavira diz que foi um trabalho árduo, não só pelo que era em termos de trabalho, mas também pelas histórias destas mulheres que caíram no desespero. “O bordado faz parte da ferida. Quando a agulha passa pelo suporte, ela deixa uma ferida, mas depois volta e cicatriza. Ou seja, há uma sensação de cura. Acho fofo e por isso o bordado tem sido usado em muitas batalhas sociais pela preservação da memória. É uma forma de linguagem visual que as mulheres usam para se comunicar, para preservar a história, para fazer reclamações”, explica.

As obras das duas irmãs, produzidas pela companhia de teatro independente Incidente Teatro, poderão ser vistas a partir de 15 de novembro deste ano no palco El Milagro, no bairro de Juarez, na Cidade do México, com uma programação de 16 apresentações. Segundo os organizadores, esta é uma oportunidade para refletir sobre a dor que está dilacerando este país. “Acredito profundamente no poder do teatro”, afirma Marina de Tavira. “É um espelho no qual nos vemos como sociedade, como pessoas, como coletivo e, nesse sentido, conscientiza”, afirma.