dezembro 20, 2025
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Irmã Rio – o primeiro romance da escritora letã Laura Vinogradova (1984). Por isso recebeu o Prémio da União Europeia em 2021 e nele constrói uma história íntima baseada no desaparecimento familiar de Dina, cujo rasto se perdeu após uma noite trivial no apartamento da sua irmã Rute, personagem principal do romance.

Dez anos depois, vemos que Rute abandonou subitamente o seu apartamento e o seu marido Stefans para se refugiar na casa que o seu pai Jule, que ela nunca conheceu, lhe deixou como herança. O romance centra-se na convivência de Ruthe com os habitantes da casa vizinha – Matilda, os seus dois filhos e Christophs, seu irmão marinheiro – bem como na escrita de cartas que Ruthe endereça a Dina, dada a sua incapacidade de encerrar a sua dor por ela. A partir deste novo espaço rural, isolado e imbuído de um forte simbolismo proporcionado pela presença magnética do rio próximo (“O caudal do rio é a irmã mais velha do meu desespero”, declara a protagonista), Rute tenta perceber o que estava em jogo nesta despedida.

Irmã Rio Este é um romance eficaz em sua brevidade. Este é um artefato literário bem construído: não há lacunas nem tempos mortos. Os personagens, embora pouco desenhados, são verossímeis e conseguem transmitir humanidade. A carta é sóbria e contida, o que de certa forma poderia servir de metáfora para o carácter letão, se é que tal coisa pode ser definida. Poderia haver, por analogia, um romance muito italiano ou um romance muito húngaro? Talvez a “coisa letã” neste caso seja a sensibilidade especial dos seus habitantes para com a natureza. Como uma parte significativa do PIB da Letónia provém das exportações de madeira, as suas florestas, que são personagens quase secundários no país, também são personagens da literatura escrita lá. Isso é visto claramente no romance com a já mencionada ênfase no rio e no poder perturbador que ele exerce sobre Rue. Embora por vezes o autor nos faça oscilar entre o rural e o urbano, entre o atávico e o moderno, a modernidade quase parece uma intrusão no silêncio da floresta.

Apenas alguns romances se atrevem a revelar, sem vergonha ou morbidade, a relação dos personagens com seus resíduos corporais.

A eficácia do livro decorre também da utilização precisa dos seus recursos narrativos, como se fosse uma receita improvisada com o pouco que tinha na despensa e que, no entanto, se revelou muito saborosa. Um dos sucessos mais notáveis ​​é o uso do escatológico como recurso narrativo. Apenas alguns romances se atrevem a revelar, sem vergonha ou morbidade, a relação dos personagens com seus resíduos corporais. Nesse caso, Vinogradova prefere mostrar o que confunde a todos (“É melhor não falar de urina”, lemos no parágrafo), por meio de anedotas cotidianas que marcaram a vida dos heróis, por exemplo, quando, quando crianças, duas irmãs usavam potes de vidro como mictórios para não terem que se levantar para ir ao banheiro, com medo de acordar o namorado violento da mãe.

Como se o autor nos lembrasse que a vida, apesar das tentativas de decorá-la, sempre se resume ao fisiológico – alimentação, sono, evacuações – no final do romance nós, leitores, nos sentimos tocados, mas ao mesmo tempo, num sentido metafórico, limpos.

Laura Vinogradova
Tradução de Rafael Martin Calvo
Tartaruga búlgara, 2025
180 páginas, 10 euros.

Referência