Gonzalo Celorio (Cidade do México, 1948) tem setenta e sete anos, corpo desgastado e voz fraca, mas ainda conserva a juventude literária: não envelhece nos livros. Ele diz que escreve lembrando, mas escreve para esquecer. Isto está em … romances onde resolve os conflitos que não consegue resolver à mesa, e os transfere para o leitor, que reconhece nos seus conflitos conflitos deste tipo. “Toda obra literária é autobiográfica”, insiste. Acaba de publicar This Heap of Broken Mirrors (Tusquets), livro que já ganhou o Prêmio Cervantes.
“Ele roubou de Borges o título de suas memórias: “Somos nossa memória, / somos esse museu quimérico de formas impermanentes, / essa pilha de espelhos quebrados”.
— Em 1955, quando foi nomeado diretor da Biblioteca Nacional da Argentina, Borges finalmente perdeu a visão e ficou cego. Fiquei sem voz como diretor da Academia Mexicana de Línguas: é um paradoxo semelhante (e ele ri). Ele tem outro poema maravilhoso que diz: “Ninguém se rebaixa às lágrimas e às censuras / esta reivindicação de domínio / de Deus, que com majestosa ironia / me deu os livros e a noite”.
— Você se considera um escritor de memórias?
– Bom, sim, a verdade é que foi no passado que consegui encontrar traços identitários que me definem no presente e me projetam no futuro. Falei muito sobre minha família nos meus três últimos romances (Tri Lindas Cubanas, El metall y la escoria e Los Apostatas), mas o próprio romance os transformou significativamente. O que me interessa são os grandes acontecimentos sociais que estes personagens podem representar: a Revolução Mexicana, a Revolução Cubana e a Revolução Sandinista na Nicarágua.
— Se a escrita distorce as memórias, então escrever é uma forma de conhecer ou não conhecer a si mesmo?
“Não creio que exista uma diferença tão clara entre ficção e memória.” O termo “autoficção” é agora amplamente usado para se referir a romances de natureza autobiográfica, mas de alguma forma disfarçados de ficção. Mas acredito que, a rigor, toda obra literária é autobiográfica: estamos sempre projetando o nosso ser. Por outro lado, toda literatura, por mais realista que pretenda ser, acaba sendo ficcional porque utiliza (tosse e tosse de novo: os efeitos do câncer), porque utiliza o mecanismo que é a linguagem. E a linguagem não é a realidade, a linguagem é uma representação da realidade, um simulacro da realidade. Tudo o que passa pela peneira da língua fica distorcido.
“Ele argumenta que a literatura latino-americana é especialmente modesta.
“Acho que essa modéstia é muito mais pronunciada na América Latina e principalmente no México do que na Espanha. No México, até a poesia lírica é modesta, muito reservada, muito reservada. E a mesma coisa acontece nos romances. Há uma espécie de contenção que permite não dizer tudo. Por exemplo: se o presidente dos Estados Unidos está escrevendo suas memórias, ele pode começar a falar sobre o nome do cachorro de sua filha e como ele fazia panquecas nas manhãs de domingo; Nenhum ex-presidente mexicano faria isso ao falar sobre sua administração governamental. Não sei por que, mas isso acontece.
-Você é modesto?
— Dei muito trabalho para me despir na hora de escrever, porque não quero sair pelado (e ele ri de novo). Algo paradoxal acontece comigo: visto-me com a minha nudez. A nudez da escrita tornou-se minha roupa.
“Borges ficou cego quando era diretor da Biblioteca Nacional da Argentina; “Fiquei sem voz como diretor da Academia Mexicana de Línguas”.
— Uma das críticas à autoficção, porém, é que se trata de literatura marginal. Existem romances e histórias que falam sobre você.
– Eu penso que sim. Mas se continuássemos nesta linha, acabaríamos por olhar para a obra de Proust, ou para a obra de Giacomo Casanova, ou para a obra de Bertrand Russell, ou para a obra de Benjamin Franklin, o menor. Na história da literatura ocidental não há ninguém mais memorialista e mais confessional do que Marcel Proust, e ele é um dos maiores.
— Cito: “Sou mais jovem do que meu pai era na fase final de sua existência”. O que mantém você jovem?
“Não foi o exercício físico, mas a prática docente na Universidade Nacional (região autônoma do México) que me manteve jovem por pelo menos cinquenta anos. Passei praticamente toda a minha vida adulta ensinando e me alimentando da juventude dos meus alunos. Esse é um tipo de vampirismo que nós professores praticamos, ele nos rejuvenesce, nos mantém vivos. E mais uma coisa: não acho que exista um professor realmente bom que não aprenda com seus alunos. Pelo menos essa foi minha experiência ao longo dos anos, porque eu também tive uma experiência muito boa. status privilegiado na universidade.
“Ele chefiou o departamento dedicado ao exílio republicano espanhol.
“Isso é muito importante para mim porque muitos dos professores que me ensinaram eram do exílio espanhol. Sempre digo que meu professor era um exilado espanhol… Mas naquela cadeira eu tinha liberdade absoluta, absoluta: a cada semestre construí meu curso com base no que queria ler ou reler naquele semestre. Foi maravilhoso. Outra coisa que me mantém jovem é escrever, da qual nunca desisti.
– Com o que ele está agora?
— Tenho um projeto muito claro – escrever um discurso para o Prêmio Cervantes (risos). Mas é aconselhável não especificar os detalhes.
—Você não está mais dando aulas?
– Não, não posso mais, por causa do mau estado da minha voz. Eu poderia dar aulas online, mas a verdade é que estou entediado (ele pigarreia e diz, ah, desculpe, minha voz já está queimando). Mas estou cansado de não ter uma relação direta e pessoal com meus alunos, de não saber se eles recuam quando leio um poema ou ficam indiferentes. Acabei de me aposentar.
“Mas ele ainda é o diretor da Academia Mexicana de Línguas.” Como você vê a relação entre Espanha e México?
— A ligação intelectual e cultural é realmente muito próxima. Existem alguns obstáculos políticos que me parecem irracionais ou inapropriados.
– Pelo que entendi, estamos falando de uma disputa com o perdão das conquistas.
– Sim, sim, me parece… prefiro não avaliar. Terei de abordar este assunto no meu discurso. Somos um país eminentemente mestiço: não reconhecer a nossa herança hispânica é como um meio suicídio, algo que não consigo imaginar. No México fazemos parte da tradição ocidental e da tradição judaico-cristã, falamos espanhol… Não vejo a adequação da distância que querem estabelecer. Eu não entendo muito bem isso. O México é o país com o maior número de falantes de espanhol. Um em cada quatro falantes de espanhol é mexicano, sem contar os falantes de espanhol de ascendência mexicana que vivem nos Estados Unidos. A RAE, especialmente no século 21, está comprometida em realizar um trabalho pan-latino-americano de grande valor, grande importância e grande significado. Este é um dos muitos exemplos de colaboração e fusão entre estas duas culturas.
– Nesta fase da sua vida, você relê mais do que lê?
— O ensino me obrigou a reler, e gosto muito disso: voltando aos mesmos escritores, lendo-os, você os torna seus. Se eu ler Sor Juana várias vezes, essa voz de Sor Juana não deixará de ser dela, mas se tornará minha, e começarei a pronunciar esses sonetos de amor e cautela como se os tivesse escrito (risos novamente). Isto é um milagre, isto é um mimetismo extraordinário. Mas a releitura não é incompatível com a leitura. Eu também leio constantemente. Nem todos os leitores escrevem, mas todos os escritores leem. Dedico todas as manhãs à escrita e todos os dias à leitura: esta é a minha vida, para corresponder minimamente ao estado letrado da minha personalidade.
— Em Uma Pilha de Espelhos Quebrados, ele conta que durante a pandemia descobriu que tinha medo de morrer. E acima de tudo, o medo de morrer por afogamento ou asfixia. Esse medo ainda existe?
– Bom, não, porque já fui vacinado (risos). Embora eu tenha tido uma Covid muito grave, foi em Madrid, por isso fui levado ao hospital. Fiquei feliz com tudo em meu sistema por trinta e seis dias. Saí muito debilitado, com todas essas doenças pós-Covid, que ainda são mal analisadas, mas ainda assim a idade cobra seu preço.
“Não reconhecer a América Latina do México é meio suicídio.”
— Ele era o décimo primeiro de doze irmãos. Até que ponto isso o caracteriza?
“Sendo o décimo primeiro filho, a verdade é que ele não tinha personalidade própria.” Foi muito difícil se destacar. Herdei tudo: herdei as roupas dos meus irmãos, os livros dos meus irmãos. Meu pai já era velho quando nasci… Felizmente, eu tinha um irmão mais velho que, de certa forma, me escolheu como futuro filho: ele era vinte e dois anos mais velho que eu, o que, curiosamente, tinha a mesma idade que eu, meu primogênito. Ele era um homem muito culto, um grande arquiteto, um excelente estudante de arte e arquitetura do vice-reinado. E no seu quarto havia uma magnífica biblioteca, que admirei com verdadeiro deleite. Ele me fez memorizar algumas palavras muito cultas e difíceis para impressionar minhas amigas. Quando ele me perguntou: o quanto você me ama, Gonzalo? E então repeti o que ele me ensinou. Dizia: te amo até a última estrela da Via Láctea, te amo até os últimos limites do universo, te amo até o lugar onde Jasão encontrou o velo de ouro no Ponto Euxino. E eu obviamente não sabia o que era confin ou quem era Jason ou algo assim, mas repetir essas palavras me deu uma grande admiração. Eu tinha cinco ou seis anos. Aí percebi que essa palavra me trouxe admiração, carinho e, acima de tudo, singularidade.
— Então a personalidade dele era a literatura.
– E na palavra. Minha vocação foi a palavra, sim, durante toda a minha vida.
– Agora você tem uma biblioteca maravilhosa. Ninguém sabe quantos livros ele tem.
“Contei-os perfeitamente, mas nunca digo isto: prefiro manter segredo, porque normalmente as pessoas não sabem qual é a quantidade de livros.”