Paco de Lucia era um artista da fome, por isso disse uma vez que os artistas do flamenco são artistas de geladeiras vazias. A frase “meio chorando, meio acreditando” explica a intensidade febril com que ele vivenciou o mistério do toque. Guitarra, … Para ele era respirar. Era o ofício sagrado de sua vida e ele sempre a chamava de filho da puta porque nada poderia te machucar mais do que aquilo que você ama. Paco de Lucia tocava violão como se o inventasse todos os dias. Paco é cantor, mas tem seis cordas. Paco é Rolling Stone, ou Beatle, ou os três, mas de Algeciras. Paco é Camaron, mas com o filho pródigo dentro de um violão inusitado. Nessas comparações um tanto persistentes, emerge o principal: ele ultrapassou os limites de seu gênero. Não era só do flamenco, fosse muito ou muito. Pertencia àquela coisa celestial chamada música. A edição deluxe de seu álbum “Cositas Buenas” já foi lançada e muitas homenagens estão em andamento.
O carácter de Paco estava cheio de necessidade e por isso associou-se, sem alarde, à linha Sabicas, à pureza do Niño Ricardo, ao rigor do Serranito, ou mesmo à revolução conceptual que Andrés Segovia trouxe à guitarra clássica. E não tanto porque Paco seguiu algum desses caminhos, mas porque, como os citados, ampliou para sempre os horizontes do instrumento. Junto com Camaron de la Isla, ele criou nove álbuns cheios do esplendor da novidade, da dor e da beleza. Juntos, eles afastaram o flamenco do folclore partidário e do clima científico. Mas nunca nos desviando da proteína pura e antiga desta galáxia. Este equilíbrio entre ruptura e raiz é o que o liga, estranhamente ou não, às figuras do rock que também reinventaram o seu instrumento sem nunca trair as suas origens, por tensão incendiária Jimi Hendrix lirismo atmosférico Mark Knopfler. Nenhum tocava flamenco, mas todos, como Paco, praticavam a mesma linguagem da liberdade.
A biografia musical de Paco tem diferentes pontos de vista dependendo da cidade em que vive, e assim o percurso da guitarra é o percurso de um homem que vai de Algeciras a Palma de Maiorca, de Madrid a Tulum no México, onde faleceu. Viajou muitas vezes pelo mundo, mas nunca saiu de Algeciras, do seu início e do seu fim. Esta fidelidade à sua origem uniu-o, em certo sentido, a guitarristas que carregavam o seu destino independentemente da origem, como acontece em BB King com Memphisou em Eric Clapton com a Inglaterra. Paco era à sua maneira um bluesman sem blues, um roqueiro sem rock and roll, um gênio musical que também amava o silêncio. Um consenso está surgindo entre os guitarristas de pop e rock, de George Harrison a John Mayer. Segundo muitos, Paco não foi um “incrível guitarrista de flamenco”, mas sim um dos maiores violonistas vivos de qualquer gênero.
Quando nosso gênio morreu ele disse Garota Coreia que em seu trabalho musical Paco teve a mesma influência de Miles Davis ou John Coltrane. E quando ele disse isso, muitos guitarristas de vários gêneros assentiram silenciosamente. O espanto que Paco causou foi enorme. Quem veio do jazz viu um improvisador sem fim. Quem veio do rock pensou em ser revolucionário. Quem saiu do palco foi auxiliado por um criador melódico impecável. Quem veio do flamenco e foi para o flamenco viu o que há de melhor na sua espécie. O caixão de Paco foi erguido em Algeciras, Tomatito e Vicente Amigoentre outras coisas, durante uma longa viagem pela rua. O caixão foi coberto com rosas flamencas da cidade.