Já se passaram dez períodos de governo, comissões da verdade, dezenas de produções acadêmicas, documentários e relatórios de especialistas nacionais e internacionais, mas ainda há peças do quebra-cabeça que deixam claro o que aconteceu nos dias 6 e 7 de novembro de 1985 no Palácio da Justiça de Bogotá.
Parte da verdade sobre a apreensão do palácio que ainda não sabemos está contida em documentos que os Estados Unidos mantêm confidenciais. Os ficheiros do Comando Sul, do Pentágono e da Agência de Inteligência de Defesa (DIA) são elementos-chave que faltam para definir claramente as decisões tomadas pela inteligência colombiana e norte-americana, os seus responsáveis directos e as suas consequências.
Em Setembro de 2023, a organização não governamental norte-americana Arquivo de Segurança Nacional (NSA) publicou 12 documentos desclassificados do Departamento de Estado e relatórios de inteligência do Pentágono revelando detalhes das ações tomadas pelo exército colombiano sob recomendações da inteligência norte-americana. Por exemplo, os EUA responderam rápida e eficazmente enviando uma aeronave C-130, três especialistas em explosivos e três agentes de inteligência com explosivos C4 e cordão detonante. Outro documento afirma que funcionários da embaixada norte-americana falaram por telefone com duas pessoas no interior do palácio, uma das quais estava no gabinete do Supremo Tribunal, que informou em tempo real que os trabalhos tinham sido retomados.
Após a leitura dos primeiros documentos, surgem algumas dúvidas. Os militares usaram equipamento militar americano para explodir a porta de metal do terceiro andar, causando a morte? É uma questão sem resposta para as vítimas que insistiram junto das autoridades colombianas e dos Estados Unidos para que os ficheiros fossem totalmente desclassificados e secções-chave daqueles que já se encontram no domínio público não fossem censurados.
Helena Uran, uma das defensoras mais fortes e inabaláveis da verdade sobre o Holocausto, em seu último livro Cancelar nós Ele pergunta sobre o relatório sobre os resultados da assistência prestada pelos Estados Unidos, o resultado das comunicações entre a embaixada e as pessoas no palácio e o papel dos agentes de inteligência americanos. Em seu primeiro livro Minha Vida e o Palácio: 6 e 7 de novembro de 1985já levantou a questão da necessidade de procurar a verdade que está nestes arquivos.
Algumas dessas respostas foram dadas em diversas entrevistas do ex-agente de inteligência José Dorado Gaviria, que confessou execuções extrajudiciais, tortura e desaparecimentos forçados durante a recaptura, detalhando a distribuição militar da operação e o papel determinante da agência de inteligência. Ele também garantiu que os explosivos enviados pelo Comando Sul foram usados para “destruir o muro onde os civis estavam detidos do outro lado”.
Segundo Dorado, até soldados uniformizados como o coronel Plazas Vega responderam ao plano da inteligência militar e foram responsáveis por controlar o primeiro círculo de combate durante a recaptura. “Não havia pessoas não ligadas à inteligência, nem no local nem dentro dele. Tinham que ser da inteligência.” Sua análise concentra-se em vincular as ações dos comandantes militares ao treinamento que receberam na Escola das Américas e à sua relevância para a política norte-americana.
Em entrevista publicada pela revista Cambio, o ex-agente admitiu a Helena Uran que após o assassinato de seu pai, o juiz Carlos Uran, a inteligência ordenou uma armação para fazer parecer que o M-19 o havia matado no palácio. “Ele era um homem que estava sendo seguido pelo coronel Álvaro Velandia, assim como por Ivan Ramirez, Harold Bedoya e Mario Montoya, que eram oficiais da inteligência. Vários suboficiais o seguiram. A inteligência militar queria que ele não saísse vivo”, disse ele em entrevista.

O depoimento do ex-agente confirma o que a Procuradoria-Geral da República estabeleceu em 2018, quando admitiu que Uran foi torturado e morto, tendo depois o seu corpo sido transferido entre unidades militares e exames periciais. Isto também coincide com o que foi documentado pela Columbia Truth Commission e Forensic Architecture em seu projeto. Caixas pretas de desaparecimentos forçadosque detalha a jornada de um grupo de pessoas categorizadas como “suspeitos” que foram detidas, torturadas e em alguns casos executadas, e em outros desapareceram à força.
Um oficial do Exército admitiu à Comissão da Verdade que ordenou e participou na tortura de cerca de 20 pessoas entre 7 e 15 de novembro de 1985. Com o seu depoimento, ajudou a restabelecer a distribuição dos centros de detenção e tortura na Escola de Cavalaria, XIII Brigada, Batalhão Charry Solano, DIJIN, SIJIN ou Casa del Florero, que eram guardados apenas por agentes de inteligência. Daí surgiu o relatório forense, que permitiu a coordenação de vários órgãos governamentais, bem como o envolvimento de militares, policiais e agentes de inteligência, juízes, legistas e outros funcionários, para legalizar assassinatos, tortura e desaparecimentos forçados com a impunidade que ainda cobre a maioria dos casos.
Refira-se que, apesar da responsabilidade que afecta os civis, foi o comando militar que assumiu o controlo e cumpriu as ordens, como confirmou a então Ministra das Comunicações, Noemi Sanin, 40 anos depois dos acontecimentos: “Fiz tudo o que pude. No dia da tomada do Palácio da Justiça, não havia gabinete de ministros. Éramos ministros, e a tomada foi uma operação militar. Procurávamos uma solução política, mas nunca tivemos espaço para uma solução militar”.
Dado que estes materiais desempenharam um papel fundamental no preenchimento de lacunas judiciais e na identificação de alegados e reais perpetradores, também suscitaram novas questões sobre a detenção e nova detenção, e sobre o que aconteceu nas semanas que se seguiram. Existem áreas cinzentas na relação entre o poder executivo, a liderança militar e as agências norte-americanas que precisam de ser esclarecidas.
Entre os telegramas divulgados pela NSA está um relatório militar dos EUA datado de 6 de Novembro, que afirma que o Presidente Belisario Betancourt está a pedir uma postura dura contra a guerrilha, sem negociações, e luz verde para o que “precisa” ser feito para resolver a situação. Algumas semanas mais tarde, outro telegrama da CIA afirmava que Betancourt estava relutante em confrontar o M-19 por medo de piorar a sua relação com os militares. Em dezembro do mesmo 1985, a Embaixada Americana enviou uma carta intitulada “Depois do Novembro Negro“no qual garantiu que todas as forças do país acreditam que as negociações com o M-19 prejudicarão a legitimidade do governo. São três versões quase modernas que mostram a ausência de um critério único.

Apesar dos pedidos do Estado colombiano aos Estados Unidos para que calculassem os ficheiros, o progresso foi nulo. O silêncio reinou nas administrações Biden e Trump. O que é surpreendente é que estas mesmas instituições dos EUA têm colaborado com comissões da verdade de países da América Central, como El Salvador e Guatemala, para desclassificar o mesmo tipo de material.
Embora a verdade que reside nos Estados Unidos permaneça oculta, houve pouco progresso em termos de justiça e reparações na Colômbia. Desde 2014, quando a Corte Interamericana declarou a responsabilidade internacional do Estado pelos crimes de desaparecimento forçado, execuções extrajudiciais, tortura e violação de garantias judiciais, as vítimas aguardam progressos instrutivos que respeitem a dignidade humana. Em vez disso, tornaram-se vítimas de repetidos acontecimentos de vitimização, como o acontecimento de 26 de Abril de 2024, quando o Presidente Gustavo Petro, durante uma cerimónia comemorativa do assassinato de Carlos Pizarro, pediu aos antigos rebeldes que subissem ao palco e agitassem a bandeira do M-19.
Antes de completar o seu mandato presidencial, Peter deve abandonar a sua história romantizada da tomada do palácio e passar para um pedido de perdão em nome do M-19 que presta homenagem às vítimas, reconhece as violações do DIH e dos direitos humanos e compensa o bom nome dos familiares das vítimas. Por sua vez, deve apelar ao Estado para que aceite a sua responsabilidade pelas execuções extrajudiciais, desaparecimentos forçados e massacres cometidos pelo Exército Nacional.
A responsabilidade do Estado e do M-19 pelo Holocausto continuará a desaparecer na história até que haja justiça eficaz. A desclassificação dos arquivos será fundamental e desempenhará um papel importante no esclarecimento dos factos e na preservação da memória. Neste ponto, o poder executivo permanece numa dívida histórica.