Hugo Gonçalves nasceu dois anos depois da Revolução dos Cravos. Talvez seja por isso que ele escreve de perto. Linda e urgente, sem perder uma palavra. Jornalista e escritor, desenvolveu um trabalho que combina memória histórica, análise social e pesquisa intensiva. … identidade individual. A sua literatura distingue-se por um estilo claro, capaz de combinar o íntimo com o político. Ele é um cara legal. Pelo menos no papel. Alguém capaz de criar tragicomédia com o maior talento e respeito.
Editor Livros sobre asteróides acaba de publicar em Espanha “Revolução” (prémio Fernando Namora e fenómeno em Portugal), um romance monumental que reconstrói a história recente de Portugal através da família, a Tempestade, desde os últimos anos do Estado Novo até ao turbulento processo revolucionário após o 25 de Abril de 1974. A história acompanha três irmãos (Maria Luísa, Pureza e Frederico) cujas vidas encarnam diferentes formas de enfrentar o fim da ditadura, o medo, a liberdade e a transformação social. A obra entrelaça o sigilo político, o conflito familiar, o despertar sexual, o trauma histórico e a real dificuldade de construção da democracia após meio século de autoritarismo. Contado Hugo GonçalvesA revolução manifesta-se não como um acontecimento político, mas como uma perturbação íntima.
Qualquer história familiar é política. Desta vez são as mulheres que ancoram o lado político da saga.
Queria escrever sobre mulheres, em parte porque os meus heróis anteriores eram homens, mas também porque a posição histórica das mulheres em Portugal antes da revolução era extremamente limitada. Ela não podia sair do país sem a permissão do pai ou do marido e não podia exercer muitas profissões. Esse contexto tornou natural que as mulheres estivessem no centro do romance.
Maria Louise, apesar de seu treinamento e beligerância, é rebaixada para a liga inferior. Mesmo dentro da revolução, as estruturas conservadoras permanecem?
O Partido Comunista foi revolucionário, mas conservador e ortodoxo nas suas actividades, o que é compreensível num contexto secreto. Além disso, Portugal era geralmente muito conservador. Muitos aderiram ao partido não por causa da ideologia soviética, mas porque era a organização mais eficaz contra a ditadura. Com o tempo, a causa absorveu a personalidade.
Vamos falar do seu personagem Frederico. A revolução sexual foi tão política como a revolução dos cravos?
Sim. Para ele, a liberdade é uma necessidade elementar, não um programa político. Ele se pergunta: “Por que ser livre?” e responde “ser livre”. Enfrenta uma sociedade em processo de transformação, mas ainda marcada por décadas de repressão.
O romance revela também que depois do 25 de abril, houve áreas que nem sabiam que havia ocorrido uma revolução.
Ocorrido. Havia áreas rurais isoladas. A revolução foi idealizada, mas a construção da democracia foi lenta e difícil. A aprovação da Constituição, a formação do primeiro governo e a consolidação das instituições demoraram. E ao mesmo tempo havia uma ameaça da extrema direita e da extrema esquerda. A democracia não se limita ao voto: exige justiça, igualdade de acesso à educação e aos serviços públicos que garantam uma verdadeira liberdade.
Ele fala da memória como um processo subjetivo determinado pela origem política de cada família. Como foi em Portugal?
A percepção do processo revolucionário depende em grande parte da herança familiar: direita ou esquerda. Não quis oferecer uma versão definitiva, mas sim mostrar as complexidades. A literatura deveria revelar nuances, não dogmas. O mesmo acontece com o colonialismo e a guerra colonial: existe um enorme fosso entre o que muitas pessoas pensam que aconteceu e o que realmente aconteceu. Quando um país não resolve um conflito histórico, esse conflito surgirá novamente no futuro.
A pureza é o personagem mais resistente à revolução. E não apenas porque ele é conservador.
É introspectivo e difícil de escrever a princípio, mas sua transformação é mais íntima e simbólica. A sua emancipação pessoal e sexual não responde a ideologias, mas a um processo interno. Ele representa aqueles que avançam em ritmo diferente, que conseguem manter posições conservadoras sem deixar de pertencer à estrutura social. Reflete também que Portugal permaneceu profundamente religioso e que muitos viveram a revolução com medo.
A família atua como aceleradora de tensão num momento histórico turbulento.
A família já é um microcosmo do conflito. Numa altura como a de Portugal, tudo se intensifica.
A revolução das chaves foi uma antecipação, um desejo para a Espanha. Quão semelhantes eles são?
Portugal e Espanha estão unidos por uma matriz cultural profunda: história, catolicismo, estruturas sociais semelhantes. A recepção do romance em Espanha confirma-o: muitos leitores disseram-me que esta família portuguesa poderia ser completamente espanhola. As diferenças residem na forma como romperam com a ditadura: houve uma revolução em Portugal; Espanha, período de transição. Mas as tensões, as ambiguidades e os dilemas são muito semelhantes.
Onde e por quanto tempo?
Na década de 1970, ambos os países eram áreas profundamente isoladas e conservadoras. A religiosidade, o medo da mudança, a dificuldade de construir uma democracia duradoura após décadas de autoritarismo: tudo isto é comum. Centenas de milhares de pessoas emigraram para Portugal entre 1965 e 1974; Algo semelhante aconteceu na Espanha. Ambas as sociedades experimentaram transformações lentas e profundas que não escaparam à resistência. A Revolução Portuguesa foi romantizada, mas foi complexa: popular, não excessivamente violenta, mas difícil de consolidar. E a Espanha passou pelas suas próprias dificuldades durante a transição. Hoje, os leitores dos dois países reconhecem esta proximidade. Família, religião, feridas históricas e memória política funcionam quase como espelhos.