O Kremlin mal levantou um dedo nos últimos dias. Não foi necessário.
A proposta de paz de 28 pontos entre os Estados Unidos e a Rússia, divulgada aos meios de comunicação social na semana passada, mergulhou Washington, Kiev e as capitais europeias no caos, criando precisamente as condições que Vladimir Putin há muito procurava: uma mesa de negociações fortemente inclinada a favor do presidente russo, com a Ucrânia encurralada na avaliação de termos que não pode aceitar e a ameaça de perder o seu aliado mais importante pairando sobre a sua cabeça.
Desde o regresso de Donald Trump ao poder, tanto Putin como Volodymyr Zelenskyy, o presidente da Ucrânia, têm trabalhado incansavelmente para convencer os Estados Unidos de que não são o lado que resiste à paz. Por sua vez, o presidente dos Estados Unidos tem oscilado violentamente, criticando um lado ou outro com mensagens iradas e ameaças.
Após a cimeira Trump-Putin no Alasca, que muitos disseram ter deixado o presidente dos EUA insatisfeito, ele pareceu brevemente ficar do lado mais aberto de Kiev, acusando a Rússia de bloquear a paz. Seguiram-se importantes sanções dos EUA ao petróleo russo.
Mas o plano de paz da semana passada – elaborado em grande parte na Florida pelo promotor imobiliário americano Steve Witkoff e por Kirill Dmitriev, chefe do fundo soberano da Rússia – alterou essa dinâmica.
Embora o início exacto do plano – e o papel preciso de Trump nele – permaneça incerto, o presidente dos EUA está a adotá-lo. No domingo, ele apresentou novamente a Ucrânia como o obstáculo ao fim da guerra.
O presidente dos EUA escreveu na sua plataforma Truth Social queixando-se de que a liderança de Kiev tinha “EXPRESSADO GRATIDÃO ZERO PELOS NOSSOS ESFORÇOS”.
Entretanto, Moscovo permaneceu surpreendentemente quieto. Durante dias, o Ministério dos Negócios Estrangeiros fingiu ignorância, insistindo que nada sabia sobre qualquer iniciativa de paz, antes de o próprio Putin dizer na noite de sexta-feira que as propostas “poderiam constituir a base de um acordo de paz final”.
A estrutura do processo de negociação americano beneficia a Rússia.
Washington quer que Kiev aprove o plano antes que uma delegação dos EUA viaje a Moscovo para finalizar os termos.
O Kremlin acredita que qualquer medida de Zelenskyy para aceitar algo como o projecto de 28 pontos causaria agitação política na Ucrânia, um resultado que Moscovo acolheria com satisfação.
E Putin sabe que a Ucrânia não pode simplesmente abandonar as conversações: continua dependente de armas e informações fornecidas pelos EUA e enfrentaria um inverno potencialmente catastrófico se o seu aliado central se retirasse.
Mesmo que Kiev apoiasse o plano de paz, os especialistas e analistas russos esperam que Putin exija mais concessões.
“O plano pode ser 70% aceitável, mas o resto é algo com que Putin não concordará”, disse Anton Barbashin, membro visitante do Conselho Europeu de Relações Exteriores.
“Ele provavelmente dirá: 'Sim, vamos trabalhar nisso; aqui estão minhas alterações'”, acrescentou Barbashin.
Tatiana Stanovaya, investigadora sénior do Carnegie Russia Eurasia Center, disse que a actual proposta – que descreveu como redigida de forma desajeitada – deixa demasiado espaço para interpretação, tornando-a o tipo de documento que Putin nunca assinaria.
A formulação vaga da proposta sobre a neutralidade da Ucrânia e a futura expansão da NATO, disse ele, exigiria “documentos, prazos e compromissos concretos, nenhum dos quais aparece no projecto”.
De acordo com Stanovaya, é pouco provável que Putin abandone o seu objectivo principal de subjugar a Ucrânia e, em vez disso, pressionará por uma versão revista do plano actual que reflicta mais plenamente os interesses da Rússia.
Mas se a diplomacia estagnar, disse ele, Putin não verá “nenhum problema em continuar a guerra”, já que o Kremlin acredita que a posição da Ucrânia irá piorar com o tempo, especialmente se Trump cumprir as suas ameaças de suspender a ajuda militar dos EUA.
Na sexta-feira, Putin não chegou a confirmar que assinaria o acordo, em parte, acredita Stanovaya, porque está à espera para ver como se desenrolarão os aparentes desacordos dentro da administração dos EUA sobre o plano.
Marco Rubio, secretário de Estado norte-americano, destacou no sábado que os Estados Unidos são os “autores” do plano de paz, depois de um senador republicano ter afirmado que Rubio se distanciou da proposta e chamou-a de iniciativa russa.
“O Kremlin está observando qual facção dentro da administração dos EUA prevalece. É muito cedo para Moscou comemorar”, disse Stanovaya.
A esperança da Ucrânia, tal como em rondas diplomáticas anteriores, é que, juntamente com os seus aliados europeus, possa transformar a proposta em algo aceitável para Kiev e persuadir Trump a apoiar essa versão.
Na segunda-feira, os Estados Unidos e a Ucrânia elaboraram um plano de paz de 19 pontos que é marcadamente mais favorável a Kiev, mas adiaram as questões politicamente mais sensíveis para mais tarde.
É quase certo que Moscovo rejeitará a contraproposta e voltará à estaca zero.
Com os acontecimentos a evoluir rapidamente, Putin deverá ficar em segundo plano por enquanto, segundo Fyodor Lukyanov, analista de política externa próximo do Kremlin.
Lukyanov disse que a Rússia manterá a pressão militar “no seu nível atual” até que a Ucrânia aceite o plano original de 28 pontos, após o que Moscovo estará pronto para iniciar discussões detalhadas.
“A bola está do outro lado”, acrescentou Lukyanov.