É surpreendente que um presidente de esquerda utilize a defesa da Constituição de 1991, a mais progressista da história, como bandeira de campanha de direita. É surpreendente que, ao procurar um resultado neste momento das eleições, a Carta esteja mesmo a ser utilizada como cortina de fumo, que, se alterada hoje, poderá fazer recuar os direitos adquiridos. Embora muitos de seus artigos ainda não estejam totalmente realizados, eles são um guia para tentar alcançá-los. É importante ter uma Constituição que consagre o objectivo mais elevado de construir um Estado social de direito. Portanto, embora a ideia de Assembleia Constituinte seja um balão, uma cortina de fumaça, uma estratégia de campanha, não basta defender continuamente o que custou tanto esforço.
O Ministro do Trabalho, Antonio Sanguino, liderou um grupo de pessoas que inscreveu na Secretaria uma comissão para a promoção da Assembleia Nacional Constituinte, e com este ato o governo apresentou uma ideia que em vários momentos contribuiu para alimentar o debate público. O presidente Gustavo Petro é especialista em agitar as águas e está fazendo isso de novo porque tem a iniciativa política há mais de três anos no cargo e não quer perdê-la no momento em que começam formalmente a campanha para o Congresso e as consultas presidenciais.
Não é de estranhar que a ideia de uma Assembleia Constituinte volte a ser apresentada como um projecto eleitoral e que a onça seja mesmo utilizada como um símbolo que à primeira vista soa como um animal capaz de contrariar o tigre utilizado pelo candidato da mais extrema-direita. Os pobres animais tornaram-se símbolos desses projetos estúpidos, mas já sabemos que a política pode poluir tudo. Insisto que é estranho que o presidente Gustavo Petro trabalhe há meses para transformar um dos poucos acordos coletivos do país nas últimas décadas em motivo de discórdia. Apesar de todas as suas deficiências, a Constituição de 1991, que surgiu como resposta a uma situação de extrema violência e culminou no acordo de paz M-19, foi uma grande conquista em termos de direitos e de um acordo colectivo que já não era discutido.
É verdade que alguns líderes políticos falaram em Assembleia Constituinte porque a ideia é uma tentação, especialmente para líderes autoritários que querem sempre que as regras lhes sejam adaptadas, mas nunca foi além de uma pedra atirada à água que levanta ondas e desaparece. É verdade que algumas partes da Constituição merecem revisão, como o processo de eleição dos membros dos tribunais superiores, que acabou atolado na política, e é verdade que o Congresso tem estado relutante em se envolver em grandes reformas substantivas. É verdade que existem vários atos legislativos que o modificaram. No entanto, tudo isto não afetou o cerne da Constituição, que é social, democrático, inclusivo e laico nos seus princípios fundamentais. É isso que pode estar em risco.
Porém, o caminho é muito longo e este primeiro passo não significa que chegaremos à Assembleia Constituinte. Isto teria de passar pelo novo Congresso e, se obtiver a maioria, passar para o controlo do Tribunal Constitucional, depois para as urnas para consulta, se forem convocadas, e depois voltar às urnas para eleger os eleitores. Tudo isso está sujeito à ultrapassagem do limite e a cada procedimento. Esta é a bandeira da campanha por enquanto. Quão preocupados estão os eleitores com esta questão hoje?
O momento político é muito diferente daquele que vivemos no final dos anos 80 e início dos anos 90. Por várias razões, mas algumas que merecem ser mencionadas: embora ainda esteja presente e crescente, o nível de violência é diferente porque o nosso conflito mudou ao longo dos anos de formas diferenciadas, com maiores ou menores consequências e diferentes cenários. A realidade política da época exigia acordos de paz e apoiava amnistias que seriam hoje inaceitáveis para grande parte da população. O mundo também vivia outro momento. Hoje, milhões de eleitores em todo o mundo apoiam líderes autoritários que contribuem para a perda dos direitos dos cidadãos. Os partidos nazis aproveitam-se disso e levantam descaradamente bandeiras de discriminação contra vários grupos da população. De certa forma, o mundo parece estar indo contra o que a nossa Constituição protege.
Há 35 anos, a sétima votação que deu início à Assembleia Constituinte resultou num acordo maioritário; hoje, a proposta do presidente Petro divide e segrega. Brincar com a possibilidade de mudar a Constituição é irresponsável. O problema não é o que os eleitores assinaram em 1991, o problema é que os governos e congressos eleitos desde então não fizeram tudo o que podiam para implementar cada palavra desse texto. A tomada do Estado pela máfia ou por interesses privados transforma qualquer sonho num pesadelo. Não são necessárias novas regras, bastarão para cumprir o que diz esta Constituição. No final, todo esse debate é inútil. É sobre política, fazer campanha, movimentar emoções, conseguir votos a qualquer custo. Não há diferença entre esquerda e direita. Tudo é feito para alcançar o poder e, quando isso é alcançado, o objetivo é se sustentar. Embora a Assembleia Constituinte seja uma ideia que nasceu para morrer, vale a pena recordar o que significa a Constituição de 1991 porque, nestes tempos turbulentos, tudo pode acontecer e devemos ter planos a seguir.