Há cerca de 4,6 mil milhões de anos, a Terra não se parecia em nada com o planeta azul que conhecemos hoje. Impactos frequentes e violentos agitaram tanto a superfície como o subsolo, transformando tudo num oceano fervente de magma, um ambiente tão extremo que … água líquida não poderia existir. Naquela época, nosso planeta devia ser uma imagem viva do inferno.
E ainda hoje, 70% da superfície da Terra está coberta por oceanos… Mas como poderia a água sobreviver neste mundo de lava e eventualmente encher as bacias oceânicas? Esta questão, após décadas de investigação e debate científico, permanece em grande parte um mistério. Alguns argumentam que o nosso planeta conseguiu de alguma forma “proteger” a sua água; outros, porém, postulam que veio de fora.
Agora, liderada por Du Zhixue, do Instituto de Geoquímica de Guangzhou da Academia Chinesa de Ciências, uma equipa de investigadores acaba de apoiar a primeira opção, descobrindo que, naqueles primeiros dias, quantidades significativas de água poderiam ter ficado “presas” na parte mais profunda do manto da Terra, à espera que o mundo arrefecesse o suficiente para fazer a transição do estado líquido para o sólido.
Toda esta água “isolada”, explicam os investigadores num artigo recentemente publicado na revista Science, poderá mais tarde desempenhar um papel fundamental na transformação da Terra no mundo habitável que é hoje.
Superpotência Bridgmanita
Pesquisas anteriores já demonstraram que, na temperatura certa, a bridgmanita (o mineral mais abundante na Terra porque é um componente importante do manto) tem uma capacidade significativa de armazenamento de água. Zhixue e seus colegas queriam testar esta hipótese, mas para isso tiveram primeiro que superar dois problemas principais.
Primeiro, eles precisavam simular em laboratório as condições de pressão extrema que prevalecem em profundidades superiores a 660 quilômetros, onde a maior parte da bridgmanita se forma. E, em segundo lugar, tinham de ser capazes de detectar com precisão sinais de água em amostras do mineral (menos de um décimo da espessura de um fio de cabelo humano) e em concentrações de apenas algumas centenas de partes por milhão.
Os pesquisadores demonstraram que o manto inferior se tornou o maior reservatório de água do planeta.
Os pesquisadores conseguiram superar esses obstáculos criando uma máquina especial que funciona essencialmente como uma panela de pressão. Eles usaram diamantes para esmagar as amostras e lasers para aquecê-las a temperaturas de quase 4.100 graus enquanto registravam o que aconteceu. Em outras palavras, eles foram capazes de simular com sucesso as condições nas profundezas da Terra. Dessa forma, eles conseguiram medir o calor com precisão e entender melhor como as rochas absorvem água no interior do planeta.
Além disso, Zhixue e sua equipe usaram tecnologias de análise avançadas, combinando instrumentos que funcionam como poderosos scanners médicos e câmeras de altíssima resolução, mas projetados para ver coisas em nível atômico, além das capacidades do olho humano.
Graças a esses “super loops”, eles conseguiram identificar onde a água estava dentro das amostras e confirmar que o elemento líquido poderia de fato se integrar à bridgmanita.
Quanto mais quente, mais água
Os dados também revelaram algo inesperado: a capacidade da Bridgmanite de “bloquear a água” aumenta significativamente com o aumento da temperatura. Isto significa que durante a fase mais quente do “oceano de magma” da Terra, a bridgmanite pode ter contido muito mais água do que se pensava anteriormente, o que por sua vez desafia a crença de longa data de que o manto inferior profundo é essencialmente seco.
A descoberta permitiu aos pesquisadores criar um modelo confiável do processo de cristalização do oceano de magma primário. Os resultados da modelagem mostraram que, devido à forte capacidade de retenção de água da Bridgmanita em altas temperaturas, o manto inferior se tornou o maior reservatório de água do planeta após a solidificação do oceano de magma.
As descobertas desafiam a crença de longa data de que o manto inferior profundo é essencialmente seco.
E não estamos falando de um valor insignificante. Na verdade, segundo o modelo, a capacidade do manto poderia ser cinco a dez vezes maior do que as estimativas anteriores. Como resultado, a quantidade total de água retida é suficiente para encher todos os oceanos da Terra. Nada em comum com cálculos anteriores, que limitavam essa água a apenas 0,08% do necessário.
Finalmente, o estudo mostra que esta água profundamente enterrada não era um simples reservatório estático. Em vez disso, agiu como um lubrificante para o vasto motor geológico da Terra: baixou o ponto de fusão e a viscosidade das rochas do manto, promovendo a circulação interna e o movimento das placas, e dotou o planeta da capacidade (única entre todos os mundos conhecidos) de sustentar vida durante muitos milhões de anos. Com o tempo, esta água isolada foi gradualmente “bombeada” de volta à superfície através da atividade magmática, ajudando a formar a atmosfera e os oceanos primordiais da Terra.
No seu artigo, os investigadores observam que a “faísca” desta água profundamente selada foi provavelmente a força decisiva que transformou o nosso planeta de um buraco magmático no mundo azul e favorável à vida que conhecemos hoje.