2009 foi um ano importante para a Puerta del Sol. Após seis anos de obras, entrou em funcionamento a renovada estação de Sercanias, uma das mais movimentadas de Madrid. Esta reforma abrangente fez da praça o coração da cidade. As mudanças foram muitas, mas a mais marcante foi a instalação de uma cobertura de acesso à estação. Há 14 anos, esta estrutura curva de aço inoxidável e vidro, projetada pelo arquiteto de Salamanca Antonio Fernandez Alba, acolhe milhares de viajantes que passam diariamente pelo coração da capital.
A tenda única recebeu vários apelidos. Baleia, engolidor de bolas, iglu ou aquário de vidro são apenas alguns dos nomes que recebeu. O que há de mais notável neste design, porém, é a polêmica que gerou desde o dia em que foi instalado, tanto em relação à sua estética quanto à sua funcionalidade. A baleia foi concebida numa época em que a arquitetura moderna ousava dialogar com o espaço público através de formas escultóricas, seguindo projetos como a Pirâmide de Pei no Louvre.
Em resposta às inúmeras críticas recebidas desde a sua instalação em 2009, após a última reconstrução da praça realizada sob a prefeitura de José Luis Martínez-Almeida, a baleia foi condenada ao “corredor da morte”. O projeto de reforma, concluído em 2023, teve como objetivo a pedonalização da praça e a substituição da polêmica marquise por uma cobertura oval de vidro que permitiria a visão plena da praça. A ação incluiu a relocação de três esculturas e a construção de um novo chafariz, mas foi adiada. Segundo a documentação municipal, a substituição não foi considerada viável na altura devido aos prazos estabelecidos pela Adif, gestora do serviço Cercanías, que foi obrigada a elaborar um relatório de avaliação de risco.
Foram muitas as propostas de alteração do polêmico projeto, e uma das que teve maior repercussão foi a do arquiteto Álvaro Bonet. Maior conhecedor da obra de Antonio Palacios, propôs restaurar o acesso que existia na praça até a década de 1930 – cópia exata do templo no local da atual baleia. No entanto, a Direção Municipal de Obras descartou a intervenção por motivos técnicos. Após várias negociações, foi acordada uma fórmula em Março de 2024 para substituir a marquise através de uma licença em vez de um contrato. Quase dois anos depois, as datas finais de execução ainda não foram definidas. Seu substituto está atualmente em espera, sem data informada.
O debate sobre a permanência da baleia reflecte tensões mais profundas na gestão do espaço público em Madrid. Após a conclusão da reconstrução do Sol, a praça tornou-se palco de grandes campanhas publicitárias. Instalações seriais como Fúria ou Coisas estranhas ou a experiência imersiva do PlayStation transformou a entrada da estação Cercanías numa vitrine permanente de marcas comerciais.
A gestão destes espaços fica a cargo da Global, que tem contrato de exclusividade com a Adif para utilização de publicidade nas estações ferroviárias, incluindo Cercanías. O contrato da Global Media com a Adif foi assinado em 2022 por um período de dez anos com possibilidade de mais cinco anos. A empresa está também presente noutros modos de transporte em Espanha, como os autocarros e o metro de Barcelona, onde em 2025 assinou um contrato que garante ao empreendimento um rendimento mínimo anual de 7,4 milhões de euros.
Desde 2022, a Global transformou as suas principais estações espanholas com a instalação de mupi digital, ecrãs widescreen e ferramentas de medição como a geostation, a primeira tecnologia que permite o cálculo de audiências nacionais nas estações, optimizando a visibilidade das campanhas publicitárias. Como a própria empresa afirma no seu site, as estações Adif estabeleceram um recorde histórico de viajantes em 2024, combinando estes espaços como um ambiente publicitário poderoso e sustentável e colocando a Puerta del Sol no epicentro da comunicação da marca.
A Somos Madrid conseguiu confirmar à Adif que este acordo foi celebrado na sequência de um concurso público, ganho pela Global, e que a empresa tem total controlo sobre a gestão de marketing e publicidade em todas as estações. A empresa encara os imóveis Sol como uma “experiência de marca única”, capaz de influenciar o enorme público que percorre todos os dias o Zero Quilómetro da capital.
Em julho, a Baleia do Sol se transformou em uma boca gigante. A promoção fez parte de uma campanha inédita promovida pela Global, EssenceMediacom, mStudio e HBO Max. A estrutura simbólica foi transformada para anunciar o lançamento da série. Fúria. Utilizando mídias digitais e elementos interativos, a campanha foi realizada dentro e fora da emissora. Segundo os especialistas em publicidade da época, esta acção é um exemplo de como a publicidade exterior “pode ser integrada de forma respeitosa no ambiente urbano, proporcionando valor cultural e social”.
A primeira instalação demorou várias semanas. Então, em novembro, a baleia transformou-se completamente numa nave espacial acidentada. Foi a peça central Isso acontece no PS5campanha com a qual a PlayStation comemorou o lançamento de seu console de quinta geração. Durante quase um mês ocupou uma tenda, que ficou vaga por pouco tempo.
Neste mês de dezembro, a campanha publicitária da nova temporada da série Coisas estranhas encheu todo o centro da capital com luzes de Natal, videomapping na fachada do Royal Post Office e até tampas de esgoto personalizadas. Keith não ficou longe do fenômeno audiovisual. Há vários dias, a tenda está coberta por um outdoor iluminado com uma placa da série e os tentáculos de Vecna.
A Ágora de Madrid tornou-se um “mercado publicitário”
Enquanto grandes empresas como HBO Max, Netflix ou Sony celebram estas oportunidades, especialistas em planeamento urbano e arquitetura alertam para a banalização do espaço público. Jesús San Vicente, porta-voz do grupo NEXO do Colégio de Arquitetos de Madrid, critica como a Puerta del Sol se tornou “o palco de um espetáculo comercial”, onde os cidadãos se tornam meros fantoches de coreografia publicitária. “Há alguns meses criaram algo como uma boca e uma estrutura para o PlayStation. Achei péssimo. Depois apareceu Stranger Things, a mesma coisa. O importante é a filosofia que está por trás disso, não resta um único metro quadrado em Madrid que não fique sem bens. Estamos falando de um patrimônio coletivo, não de um espaço privado”, denuncia.
San Vicente lembra-nos que qualquer intervenção mínima no espaço público requer múltiplos controlos, enquanto as instalações publicitárias são instaladas com “total impunidade”. Ele enfatiza que a Puerta del Sol, símbolo da ágora cívica e do 15M, tornou-se um local onde as funções cívicas e a democracia estão subordinadas à comercialização: “Quando a ágora se torna um mercado, os cidadãos tornam-se participantes num espetáculo de marketing. Isto é muito grave, especialmente num espaço com uma carga simbólica tão grande”.
O arquitecto denuncia também a falta de critérios culturais e arquitectónicos em Madrid. Ao contrário de cidades como Barcelona ou Logroño, que acolhem concursos de iluminação ou arquitetura efémera, na capital as empresas criam estruturas sem controlo estético ou cultural. Exemplos recentes incluem decorações de Natal, que São Vicente chama de “vergonhoso Gorterismo”. A política municipal, diz ele, não confia em arquitetos e designers, mas em empresas que têm total liberdade para interferir no espaço público, muitas vezes com resultados questionáveis. “Os líderes políticos parecem gostar desse sabor de Miami 2 com Fórmula 1, futebol americano… como se a cidade fosse um parque temático”, lamenta.
Sobre a baleia solar, San Vicente observa que a obra de Antonio Fernández Alba, embora seja obra de um arquitecto de prestígio, tem uma presença agressiva na praça e deve ser submetida a um concurso público que garanta diversidade de propostas e critérios democráticos. “A Puerta del Sol é o coração simbólico da democracia em Madrid. Substituir a baleia não é apenas uma questão de design, mas também de simbolismo e função. A solução certa seria realizar um concurso público”, insiste.
Atualmente, a comercialização do espaço é óbvia. As entradas do metro e as Serkanias funcionam como dispositivos temáticos que integram os cidadãos nas narrativas de consumo. Estruturas efémeras ocupam espaço e deslocam funções cívicas, enquanto eventos e campanhas promocionais redefinem a Puerta del Sol como um produto urbano em vez da “ágora democrática” defendida pelo arquitecto.
São Vicente oferece uma alternativa: uma aposta na arquitectura efémera de qualidade com concursos e memória cultural que nos permite pensar a sustentabilidade, o futuro da cidade e do espaço público. Sem estas iniciativas, alerta o arquitecto, Madrid corre o risco de banalizar os seus locais mais emblemáticos, substituindo o património colectivo por decorações comerciais de grande formato.