El Fasher, a capital do Norte de Darfur, é um dos maiores infernos da atualidade. Após mais de 500 dias de cerco, a cidade caiu nas mãos das Forças de Apoio Rápido (RSF), um grupo paramilitar que lutava contra o exército sudanês. No final de Outubro, após meses de ofensiva, as milícias capturaram a cidade e dizimaram a população através de ataques armados, violações de mulheres e raparigas e bombardeamentos incessantes de civis. As interrupções nas comunicações dificultaram a verificação do número de mortos, mas as Nações Unidas estimam que cerca de 500 pessoas morreram só na maternidade saudita em El Fasher. E o número de mortos após a captura do município, segundo as autoridades sudanesas, pode ultrapassar as 2.000 pessoas.
Shaina Lewis, consultora de direitos humanos da ONG Avaaz, focada no Sudão, chama o massacre de El Fasher de “o genocídio mais previsível do planeta”. “Em uma semana, a RSF executou tantos civis que a terra de El Fasher mudou”, disse ele ao jornal EL PAÍS por videoconferência. “Do espaço você pode ver os litros de sangue que mancharam a terra.”
O Laboratório de Pesquisa Humanitária (HRL) da Escola de Saúde Pública da Universidade de Yale (EUA) analisou a situação na área de El Fasher no final de outubro. Imagens de satélite incluídas no relatório recente mostram veículos da RSF, alguns equipados com armas, bem como objetos do tamanho de corpos humanos e manchas avermelhadas no chão perto dos veículos. O think tank estimou o número de mortos em 10.000 civis.
Os sobreviventes dos ataques, agora abrigados no campo de deslocados de Tawila, 60 quilómetros a oeste de El Fasher, partilharam os seus testemunhos durante a conferência. Todos os nomes usados nos depoimentos dos sobreviventes foram alterados para proteger suas identidades.
Amira, mãe de quatro filhos, fugiu de El Fasher em direção a Qorma, cerca de 40 quilômetros a noroeste. A estrada, disse ele, era longa e “cheia de cadáveres”. A família testemunhou os assassinatos com os próprios olhos e ninguém pôde ajudar. “Acordamos tremendo de medo, com imagens de carnificina nos assombrando”, disse Amira em recente entrevista coletiva organizada pela Avaaz. Os membros da RSF levaram ela e os seus filhos como reféns: “Eles não nos deixaram ir até que lhes pagássemos um milhão de libras sudanesas (cerca de 1.500 euros) por pessoa”. Privados de todos os seus bens, chegaram a Tawila: “Caminhamos cerca de 10 horas por entre espinhos”.
Mohamed, outro sobrevivente de El Fasher, trabalhava no refeitório da maternidade saudita, o último centro médico remanescente, no momento do ataque. Ele escapou. No caminho para Tawila, a polícia revistou-o completamente e aos que o acompanhavam: “(RSF) até checou as fraldas e os pensos higiénicos das crianças”. Ele se lembra de ter sido repetidamente espancado e humilhado. Você também tem que andar com fome e sede por horas.
Hawa, viúva e mãe de dois filhos de 2 e 12 anos, está grávida de oito meses. Ela decidiu deixar a capital após o assassinato do marido. Todos os seus pertences foram roubados. No caso dela, a própria polícia levou-a para Tawila. “Não sei nada sobre a minha família em El Fasher”, lamentou numa conferência de imprensa. “O inverno está chegando. Precisamos de organizações que nos ajudem, entregando cobertores, roupas, recipientes de água.”
A transferência de civis de El Fasher para Tawila pela RSF é uma prática recorrente, segundo Lewis, mas tem sido questionada por trabalhadores humanitários. O especialista identifica três esquemas: civis são mortos, levados para o campo de Tawila ou transportados para locais desconhecidos. Neste último caso, o tratamento e o destino que receberão são desconhecidos.
Deng partiu no primeiro dia do ataque final à capital. Ele lembra como os paramilitares reuniram várias pessoas, inclusive ele próprio, e fizeram uma transmissão ao vivo se gabando do bom tratamento dispensado aos civis. No entanto, pouco antes disso, a polícia levou todos os seus bens. O homem também se lembra de ter sido atacado por drones da SAF, exército sudanês ao qual foi acusado de pertencer. “(A RSF) dizia que não havia mais civis em El Fasher, que éramos todos soldados da SAF”, explica ele.
Khamisa destacou os dias de cerco à capital: “Nos últimos dois dias não tivemos nada para comer”. A polícia levou seu filho junto com centenas de outros menores. “Eu disse a eles que estava doente, que estava anêmico. Implorei que me devolvessem”, diz ele. No dia seguinte ela foi transferida para Tawila. Ele nunca mais viu seu filho.
Abu perdeu dois dos seus filhos nos atentados da RSF, um deles na sua própria casa. O mercado onde trabalhava também foi bombardeado. Vendiam sacos de ração animal, que durante vários dias foi a única fonte de alimento à disposição da população. Depois de ser feito refém, teve de telefonar a um amigo para responder ao pedido da milícia de um milhão de libras sudanesas (1.500 euros). Após sua libertação, ele levou três dias – caminhando e “exausto” – para chegar a Tawila.
Violência sexual e crianças desacompanhadas
Embora os dados recebidos ainda sejam insuficientes devido a interrupções na rede de comunicação, as informações obtidas por especialistas na área são alarmantes. Algumas delas são sugeridas por Adam Royal, representante da Coordenação Geral de Deslocados e Refugiados. “Registámos 150 casos de violência sexual, 1.300 ferimentos de bala e 750 crianças não acompanhadas” entre os que chegaram de El Fasher ao campo de Tawila, o último refúgio seguro em Darfur.
Natalia Romero, especialista em comunicação dos Médicos Sem Fronteiras (MSF) no Norte de Darfur, insiste que o fluxo de pessoas ainda é importante: “É muito difícil estimar o número de pessoas que chegaram, mas variam entre 5.000 e 15.000, embora não haja nenhuma organização oficial que faça a contagem”, diz ela numa nota de voz. O acesso da ONU ao território controlado pela RSF continua restrito.
Em Agosto passado, a Organização Internacional para as Migrações (OIM) estimou que cerca de 260 mil pessoas ainda viviam em El Fasher. Romero disse que houve “muito poucas” chegadas a Tawila. No entanto, esta é uma grande preocupação para os trabalhadores no terreno: indica que muitos civis morreram ou permanecem na cidade controlada. “É um banho de sangue”, diz um trabalhador de MSF.
Os humanitários também temem os efeitos da guerra sobre os jovens. Francesco Lanino, vice-diretor de programas e operações no Sudão da ONG Save the Children, está preocupado com o aumento do número de crianças-soldados. Um crescimento que já foi detectado e que, se não for enfrentado, ameaça prolongar a guerra. Até que se chegue a uma trégua e haja alguma estabilidade na área, lamenta Lanino, a sua equipa não poderá intervir.
Numa outra conferência de imprensa, na passada sexta-feira, em Madrid, o Encarregado de Negócios da Embaixada do Sudão em Espanha, Shza Abdelaziz Kamil Abdelaziz, reafirmou o “compromisso” do governo sudanês com uma “paz justa e equitativa” no país, mas condenou, tal como Lewis, a passividade da comunidade internacional. O governo, garantiu ele, só se sentará para negociações com a milícia quando esta “depor as armas e se submeter à autoridade do Estado”.