novembro 16, 2025
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Documentário O DNA de Hitler: o plano do ditador (“Hitler's DNA: Dictator Archetype”), transmitido pelo canal britânico Channel 4, foi concebido para provocar controvérsia e manchetes sensacionais, por mais esforço que os seus autores fizessem para fazer um trabalho rigoroso ou moderado. Embora algumas das conclusões apresentadas tenham posto fim definitivamente a lendas e superstições prejudiciais, como as supostas origens judaicas do ditador (totalmente falsas), outras permitem uma dose de sensacionalismo, como a ideia de que Adolf Hitler realmente teve micropênis ou que lhe faltava um testículo. E outros abrem debates éticos importantes, como a descoberta dos investigadores de que o personagem que mais simbolizou o mal na história da humanidade aparentemente tinha uma predisposição para sofrer de síndromes neuronais como autismo, esquizofrenia, transtorno bipolar ou transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH).

A história por trás do programa de dois episódios é tão fascinante quanto suas conclusões. Envolveu cientistas credíveis como o historiador britânico Alex Kay, agora na Universidade de Potsdam e especializado na Alemanha nazi, ou o geneticista Turi King, responsável, entre outras descobertas importantes, pela identificação dos restos mortais do lendário Ricardo III num parque de estacionamento ao ar livre em Leicester em 2012. “Tive um debate angustiante (sobre participar ou não no documentário)”, admite King nos minutos iniciais da emissão. Mas percebeu que mais cedo ou mais tarde seria feita uma investigação e decidiu aderir para mostrar a cautela e a seriedade necessárias.

O ADN de Hitler foi obtido a partir de vestígios de sangue encontrados num sofá do bunker onde o ditador nazi cometeu suicídio com um tiro na cabeça pouco depois de as tropas aliadas terem entrado em Berlim. O Coronel do Exército dos EUA Roswell P. Rosengren conseguiu obter acesso ao abrigo e cortou um pedaço da tapeçaria, que está em exibição no Museu Histórico de Gettysburg há muitos anos.

Nenhum dos parentes vivos de Hitler ofereceu a oportunidade de comparar o seu material genético com os restos sanguíneos para confirmar a sua autenticidade. Mas os investigadores tiveram uma amostra masculina recolhida por um jornalista belga há uma década, enquanto investigava rumores de que o futuro ditador teria tido um filho fora do casamento durante a Primeira Guerra Mundial.

A comparação rendeu uma identificação precisa do cromossomo Y. Era o DNA de Hitler. A partir daqui, conclusões e descobertas sobre a origem, patologias, biologia e saúde mental do personagem revelam uma série de poucos fatos confiáveis ​​e muitas hipóteses com maior ou menor validade científica.

Síndrome de Kallmann

A parte que muitos considerarão mais positiva nas conclusões do documentário é a rejeição categórica da ideia de que Hitler era descendente de judeus, uma farsa propagada durante décadas por negadores do Holocausto e revisionistas da história que ainda é ouvida nos últimos tempos. Em 2022, o ministro dos Negócios Estrangeiros russo, Sergei Lavrov, usou o argumento de que Hitler “tem sangue judeu” para justificar as suas acusações de nazismo contra o presidente ucraniano Vladimir Zelensky, que é de ascendência judaica.

Mas a descoberta mais desagradável do programa é a ausência de uma letra no gene PROK2. Desta ausência, pode-se inferir que Hitler sofria, em certa medida, de uma doença genética conhecida como síndrome de Kallmann, que, entre outras coisas, afecta a puberdade e o desenvolvimento dos órgãos reprodutivos. Isso pode fazer com que um dos testículos não desça até o escroto ou que o tamanho do pênis fique muito pequeno.

A conexão é imediata. Durante a Segunda Guerra Mundial, a canção era popular entre os soldados britânicos. Hitler só tem uma bola (Hitler só tem um ovo). “Hitler, ele só tinha um ovo, o outro está no Albert Hall (sala de concertos de Londres), a mãe dele, uma criatura imunda, cortou-o quando ele era pequeno”, dizia o refrão.

A ideia dos pequenos órgãos genitais do ditador parecia corresponder aos registros médicos da prisão de Landsberg, onde Hitler foi preso após o fracassado Putsch de Munique de 1923, descoberto há uma década por pesquisadores alemães. O médico que o examinou indicou então no laudo que o preso apresentava criptorquidia no testículo direito, que não havia descido completamente. Em nenhum momento ele falou em micropênis, e é impossível deduzir essa condição a partir dos resultados do DNA. A síndrome de Kallmann causa falta de libido e baixa produção de testosterona.

“Isso nos ajuda a entender muito sobre sua vida pessoal. Ou melhor, sua falta de privacidade”, explica o historiador Alex Kay no documentário. Na sua opinião, esta condição teria predisposto Hitler a concentrar-se na política e não em assuntos pessoais.

No entanto, muitos cientistas acreditam que um exercício como o apresentado no documentário é reducionista e simplista. Denise Syndercombe Court, professora de genética forense no King's College London, por exemplo, disse à BBC que os autores do programa “foram longe demais nas suas conclusões” e que “no que diz respeito ao carácter ou personalidade (de Hitler), o exercício foi completamente inútil”.

Questões éticas

Porque além da farsa sobre as origens judaicas do ditador ou da discussão sobre os seus órgãos genitais, os autores do programa propuseram abordagens que levantam sérios problemas éticos. Com base num teste poligénico, que avalia a probabilidade de uma pessoa desenvolver doenças complexas comparando-a com o ADN de uma grande amostra da população, o documentário conclui que Hitler exibia uma predisposição para o autismo, esquizofrenia, perturbação bipolar ou TDAH.

Embora os autores tenham o cuidado de deixar claro que esta predisposição não significa que o ditador tenha desenvolvido qualquer uma destas condições, a sua associação com eles indignou organizações como a Sociedade Nacional de Autismo do Reino Unido, que chamou o programa de “golpe publicitário barato”.

Tanto o Channel 4 quanto a produtora Blink Films. tentaram mitigar a controvérsia apontando para as opiniões de especialistas como o professor Simon Baron-Cohen, do Centro de Pesquisa do Autismo da Universidade de Cambridge, que aparece no documentário e afirma que “o comportamento de uma pessoa é o produto de muitos fatores, não apenas a genética, mas também o meio ambiente, sua infância, suas experiências de vida, a forma como foi criada, seu acesso à educação e os fatores culturais e econômicos que a cercaram”.