Julio Camba, com a sua habitual reserva, disse que certa vez participou numa festa de flamenco (“Uma festa andaluza é um assunto muito sério”), acompanhado por um amigo estrangeiro. Em meio à agitação da diversão, um cara sentou-se em um canto separado e observou … sério, imóvel, silencioso, quase ausente. Ele mal lambeu os lábios no copo. Percebi. Eu escutei. E de vez em quando, quando as coisas ficavam tensas ou uma discussão começava, ele pronunciava uma frase curta que ficava entre pensativa e enigmática. Ninguém discutiu isso. Todos assentiram. E a festa continuou.
“Ele é um pensador”, explicou Kamba ao seu perplexo amigo estrangeiro. “Veja, ele é um pensador contratado. Algo como um filósofo para casamentos, batizados e comunhões. Você verá isso em todas as festas. Nós, cavalheiros, acreditamos que nunca devemos nos preocupar com nada, e quando vamos a uma festa, trazemos todos os tipos de profissionais conosco. O violonista toca para nós, o dançarino dança para nós, o cantor canta para nós e o pensador pensa por nós.
Este Real Madrid carece de um pensador
O jogador do centro do campo que pensa, comanda e marca o tempo de jogo. Aquele que manda, que sabe quando precisa de tontura e quando precisa de clorofórmio. Organizador. Cérebro. Registro A 5. A Kroos. Rodada de Xabi Alonso. Chame isso de X.
Porque esse time tem muitos guitarristas, muitos dançarinos e muitos cantores. E acima de tudo, muitos senhores. Mas um pouco pensador.
Arda Guler tem um bom pé, um golo e uma ligação magnética com Mbappe, mas ainda não é o jogador que organiza uma equipa à sua volta. Bellingham também. Valverde é um motor, não um farol. Chuameni dá força. Camavinga é energia pura, mas a energia informe serve apenas para iluminação passageira. Falta o jogador que muitos viram no Subimendi e outros no Vitinha. Mas reduzir a questão a dois nomes é perder o foco: o que falta é um tipo de jogador, não um nome próprio.
Este Madrid é o renascimento da equipa. Reviva qualquer oponente meio morto. O Atlético foi péssimo e desabou depois do Metropolitana. O Liverpool, no meio da depressão, parecia um time impressionante em Anfield. E o Girona, na posição de rebaixamento e tendo perdido sete homens, colocou-o na corda.
Talvez o mais irónico seja que, numa época dominada por estatísticas, algoritmos e GPS, Madrid precise de algo tão antigo como o homem na esquina, observando o caos e pronunciando ocasionalmente uma frase que traga ordem ao mundo.
Pensador. Simples assim. O trabalho mais antigo do futebol.