dezembro 11, 2025
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Aos 30 anos, eu ganhava a vida com a fotografia e achava que minhas recomendações eram bastante claras. A maioria deles eram fotógrafos de retratos e moda que publicavam em revistas como Face ou IDENTIFICADOR. Até então, talvez por pura ignorância, não tinha associado a fotografia documental que via em livros e jornais; Associei-o a uma linguagem muito séria, algo dura e quase sempre a preto e branco.

Esse preconceito ruiu no dia em que me deparei com um livro que me virou de cabeça para baixo: Último recursoA série New Brighton de Martin Parr, uma exploração da classe trabalhadora britânica nas férias. Nunca vi nada parecido: a cor é tão incrível que gruda na retina; uma linguagem nova e ousada, crua e, acima de tudo, cheia de humor. Havia algo de generoso e espirituoso em seu olhar.

Naquele ano, passei alguns meses em Londres com meu parceiro. Acreditávamos que tudo de novo estava acontecendo ali e, embora cerca de fomoinsistimos em não perder nada: dias inteiros passados ​​entre fotografias e vinil, e noites ainda mais intensas completamente imersas no que então se chamava cultura do clube.

Entre tudo o que vivemos naquela época, há uma anedota que ficou na minha memória e que hoje faz parte do meu livro. Tiros contados (Anagrama, 2025). Tudo começa com hostilidade.

Um dos motivos da viagem foi visitar a exposição Martin Parr no Barbican Centre, mas na manhã do dia da inauguração deparámo-nos com uma reviravolta inesperada: alguém levou a carteira onde guardávamos quase todo o nosso dinheiro.

A perspectiva de voltar a Barcelona direto ao ponto de partida pesava muito sobre nós, mas mesmo assim decidimos ir para a exposição. Pensávamos que pelo menos a energia emitida por suas imagens nos ajudaria a processar melhor o choque.

Chame-lhe justiça cósmica ou simples acaso, mas assim que saímos de lá com o catálogo, comprado com o pouco que nos restava e simplesmente colocado na mala, fomos parados no meio da rua por um pequeno grupo de pessoas: era a equipa criativa da campanha do chocolate Cadbury, que foi ao mesmo tempo fotografada por Martin Parr.

Como a cena não funcionou muito bem com os personagens principais – duas lindas modelos profissionais que não se conheciam e não tinham química – Parr decidiu desistir e procurar, desta vez, um casal de verdade na rua.

O plano era simples, bem pago e ainda por cima com dinheiro: só tínhamos que nos beijar ao sol na grama do parque enquanto o chocolate derretia.

Ele mal falava e parecia não ter pressa. Ele respeitou as pequenas pausas que fizemos. Enquanto ele filmava, espiei o que estava acontecendo, abrindo um pouco um olho para não perder nada.

Vê-lo trabalhar com uma simplicidade incrível e um sorriso tão largo durante uma sessão onde tudo fluiu da maneira mais natural e sem esforço foi um presente. Tudo isso estava muito longe da ficção com a qual até então associava a publicidade.

Apesar da implantação da produção (clientes, agência e equipe), ele se saiu bem sozinho, com clarão gravado em sua modesta câmera. Como resultado, ele recusou a ajuda de modelos profissionais, estilistas e maquiadores que o esperavam no canto. Só restou alguém como “produto” para repor os chocolates, que se dissolveram em um minuto enquanto durou nosso longo beijo.

Foi o melhor aula magistral que já recebi. Simplificar e concentrar a energia no que realmente importa parecia fundamental. O cliente entendeu que para que a campanha exalasse autenticidade ele teria que aceitar que Parr estava impondo sua visão documental. Para isso, retirou quase toda a parafernália que o rodeava, dando preferência ao casal, ao penteado, às roupas… para que tudo fosse verdadeiramente autêntico e não houvesse nada de falso.

Aquele dia mudou minha compreensão do meu trabalho. Aprendi que você pode ser chamado a fazer o que sabe fazer bem, sem trair seus princípios, e que esse respeito começa em você mesmo: deve ser conquistado. Desde então, sempre procurei me lembrar de seus pontos de vista: mesmo nas tarefas mais comerciais, sempre deixo espaço para a honestidade.

Algumas semanas depois, após retornar, a campanha saiu às ruas. Alguns amigos ingleses começaram a nos enviar fotos de beijos em ônibus, outdoors e metrô. Cada vez que o abri, lembrei-me dele e do seu bom trabalho.

Parr, que morreu no sábado aos 73 anos, argumentou que a verdade é subjetiva, mas estava interessado em apontar certas verdades universais. Ele retratou o mundo como ele o via. Em tempos de saturação de informações e de fake news, essa ideia de verdade, por mínima que seja, ganha outra dimensão.