dezembro 15, 2025
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Na década de 1990, vários anos após o acidente na usina nuclear de Chernobyl, em 26 de abril de 1986, um grupo de cientistas liderado pela microbiologista Nelly Zhdanova, da Academia Nacional de Ciências da Ucrânia, iniciou pesquisas de campo. O objetivo deles era descobrir se havia vida na zona de exclusão – um local que cobre 30 quilômetros ao redor dos objetos – e, em caso afirmativo, que tipo de vida existia. As esperanças eram baixas: os efeitos da radiação ainda eram sentidos entre aqueles apelidados de “liquidatários”, pessoas que ajudaram na limpeza e continuaram a morrer de cancro anos depois de terem participado no esforço.

A surpresa foi enorme quando descobriram que uma comunidade inteira de fungos, de até 37 espécies diferentes, crescia ao redor do reator. Todos eles tinham algo em comum: eram em sua maioria de tom escuro, até mesmo preto. E entre eles se destacou Cladosporium sphaerospermum – fungo que dominou todas as amostras e posteriormente se tornou protagonista de muitos estudos posteriores e até de viagens ao espaço.

O segredo dessas criaturas, segundo estudo publicado pela equipe de Zhdanova na revista Mycological Research, nada mais era do que melaninauma substância encontrada na maioria dos organismos (incluindo nós mesmos) que protege contra a radiação ultravioleta em troca do escurecimento do tom da pele. Não só isso, mas segundo a equipe, esses fungos podem usar a radiação para se reproduzir e até mesmo gerar energia de alguma forma para sobreviver neste ambiente hostil. Porém, hoje, quarenta anos depois da descoberta destes estranhos cogumelos com “co-radioatividade”, o funcionamento desta “superpotência” ainda é desconhecido. Se existir.

Teoria controversa

“Tenho dúvidas de que o mecanismo funcione desta forma”, explica German Orizaola, professor de zoologia da Universidade de Oviedo e especialista nos efeitos da radiação nos animais, à ABC. “Vários grupos fizeram muitas pesquisas sobre esta questão e, neste momento, o sistema específico que deveriam usar ainda não foi determinado.” Orizaola cita, por exemplo, estudo realizado por Ekaterina Dadachova e Arturo Casadevall, da Albert Einstein College of Medicine (EUA). Eles descobriram que a radiação ionizante não prejudica o fungo como acontece com outros organismos. Além disso, como observaram, ele crescia quando “banhava-se” nele.

A melanina, pigmento que dá cor à pele, protege o corpo da radiação ultravioleta.

Alguns anos mais tarde, num outro artigo publicado em 2008, propuseram a teoria de que este fungo e outros fungos semelhantes poderiam colher radiação para convertê-la em energia (radiossíntese), algo semelhante ao que a clorofila das plantas faz com a luz. No entanto, eles também não conseguiram encontrar o mecanismo exato que deveria produzir toda essa energia.

“O debate surge porque se a melanina protege da radiação, e está provado que o faz, então é lógico supor que as criaturas que produzem mais se reproduzirão mais facilmente nesse ambiente; mas isso não significa que tirem vantagem disso de alguma forma”, explica Orizaola. Porque, apesar do estudo de Dadachova e Casadeval, outro trabalho semelhante não encontrou a mesma tendência: a própria Zhdanova e os seus colegas publicaram outro estudo em 2006 no qual descreveram que apenas 9 das 47 espécies de fungos melanizados que recolheram em Chernobyl cresceram em direcção à fonte de césio radioactivo.

E em 2022, investigadores dos Laboratórios Nacionais Sandia, no Novo México, não encontraram qualquer diferença no crescimento de dois fungos – um melanizado e outro não – à radiação ultravioleta e ao césio-137.

Sobreviva no espaço

O poder da melanina foi desafiado fora de Chernobyl e dos laboratórios. Numa experiência descrita num artigo publicado na revista Frontiers in Microbiology em 2022, C. sphaerospermum, um famoso cogumelo que cresce numa central nuclear, foi levado para a Estação Espacial Internacional (ISS), onde foi autorizado a crescer fora do laboratório em órbita, expondo-o à radiação cósmica total.

O objetivo deste artigo não foi demonstrar ou investigar a radiossíntese, mas sim explorar o potencial do cogumelo como escudo radioativo para missões espaciais. “Se isto fosse demonstrado, estes organismos poderiam ser usados ​​para revestir assentamentos lunares, por exemplo, e fornecer proteção contra radiação barata”, explica Orizaola.

Culturas descobertas na quarta unidade de energia da usina nuclear de Chernobyl, incluindo Cladosporium sphaerospermum. A melanização é claramente visível na placa superior direita.

Elsevier/Zhdanova et al., 2000.

No entanto, até agora os cientistas não conseguiram demonstrar a fixação de carbono dependente da radiação ionizante, um benefício metabólico da radiação ionizante ou uma via específica de recolha de energia. “A radiossíntese real ainda não foi demonstrada e estamos longe de demonstrar a redução de compostos de carbono a formas de energia mais elevada ou a fixação de carbono inorgânico por radiação ionizante”, escreveu a equipa que lidera o estudo.

“É provável que outros mecanismos estejam envolvidos nas experiências que mostraram evidências positivas para uma possível radiofusão”, diz Orizaola, que também viajou várias vezes a Chernobyl precisamente para estudar como a vida se reproduz num lugar tão inerentemente hostil como a zona de exclusão.

Sapos marrons em Chernobyl

Na verdade, a equipe de Orizaola testemunhou o poder da melanina em animais na zona de exclusão. Enquanto caminhavam pela floresta, descobriram exemplares de Hyla orientalis, uma rã muito comum na região do Cáucaso, espalhando-se pela Ásia Ocidental. No entanto, este anfíbio, geralmente verde brilhante, era de cor escura em Chernobyl, chegando mesmo a ser preto em alguns exemplares. O que foi surpreendente foi que, quando analisaram essas rãs “marrons”, não encontraram níveis de radiação superiores ao normal.

As rãs marrons de Chernobyl não apresentavam níveis mais elevados de radiação ou sinais de que o ambiente nuclear estivesse afetando sua saúde.

“Eles sobreviveram porque eram mais escuros, mas o acidente não causou nenhuma alteração genética neles”, explica Orizaola. Ou seja, os mais sombrios e, portanto, com maior defesa melanínica foram aqueles que resistiram à catástrofe, que no início, como aconteceu com os liquidacionistas, afetou muito a vida; e, por sua vez, essas rãs marrons mais resistentes se multiplicaram e deram origem a mais rãs mais escuras. “Mas não foi a radiação que causou diretamente essa cor”, afirma o pesquisador.

À direita está uma perereca comum; À esquerda está um sapo da mesma espécie encontrado em Chernobyl.

Germán Orizaola/Pablo Burraco

Embora a equipa não tenha conseguido viajar novamente para a zona de exclusão após a guerra na Ucrânia, graças às informações e amostras recolhidas em Chernobyl durante trabalhos de campo anteriores, conseguiram continuar a investigar os efeitos da radiação nestas curiosas rãs. Em um estudo publicado na revista Biology Letters, a equipe de Orizaola observou que “não houve efeito da radiação absorvida na idade das rãs, no comprimento dos telômeros (um biomarcador do envelhecimento celular e da idade biológica) ou nos níveis de corticosterona (um hormônio do estresse). Ou seja, a radiação não teve nenhum efeito na vida e na saúde dessas rãs.

Cogumelos com “superpoderes” à parte, uma coisa é certa: apesar do desastre radioativo que atingiu Chernobyl, hoje, mais de três décadas depois, a zona de exclusão transformou-se num jardim inesperado. A vida, nas suas formas mais persistentes e surpreendentes, encontrou o seu lugar neste território aparentemente amaldiçoado. No entanto, esta recuperação também nos obriga a pensar na ameaça real ao nosso planeta: a atividade humana.

Referência